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The Coffin of Andy and Leyley: Conheça o jogo que influenciou o assassinato de uma família, segundo a polícia

No último mês de junho, um caso criminal chocou Itaperuna, cidade com pouco menos de 120 mil habitantes no interior do Rio de Janeiro. Durante uma noite comum de domingo, um adolescente de apenas 14 anos teria assassinado os próprios pais, além de seu irmão, enquanto dormiam. Segundo o próprio suspeito, que confessou detalhes com frieza à polícia, o motivo para o crime teria sido a impossibilidade de ver sua namorada, de 15 anos, residente de Água Boa – no Mato Grosso.

Durante a investigação, a partir de mensagens do casal, a Polícia Civil do Mato Grosso concluiu que a jovem também teve envolvimento no crime, sendo considerada coautora. Nas conversas privadas, ela orientava o rapaz ainda durante o ato, e o aconselhava com dicas para não ser descoberto. Segundo as autoridades, os próximos passos do casal seria assassinar os pais da namorada.

Família vítima em Itaperuna; filho mais velho é o suspeito. (Reprodução)

Além da natureza bárbara do crime, outra coisa chamou atenção da Polícia nas conversas: a frieza e o tom mórbido das mensagens. Conforme explica o delegado Carlos Augusto Guimarães, delegado da 143a Delegacia de Polícia de Itaperuna e responsável pelo caso, as interações abordavam comumente tópicos de violência, e reforçam a ideia de que o triplo homicídio foi premeditado.

Ainda segundo o delegado, em entrevista ao jornal Povo News, um dos interesses mútuos do casal teria inspirado diretamente o crime – o jogo The Coffin of Andy and Leyley. Com mais de 930 mil unidades vendidas na Steam e lucro aproximado de R$ 39 milhões, o título de terror psicológico envolve temas e tabus de todos os tipos, incluindo incesto, canibalismo e mais.

O sensacionalismo sobre jogos violentos e crimes no Brasil

No Brasil, a mídia tradicional frequentemente associa crimes violentos envolvendo menores de idade aos jogos eletrônicos. Ignorando às circunstâncias e fatores de risco que poderiam contribuir para a culminação desses casos, essa atitude tende à vilanizar jogos populares como uma maneira de chamar atenção dos pais ou simplesmente encontrar uma resposta simples para a violência. Nessa perspectiva, títulos como Counter-Strike, Grand Theft Auto, Mortal Kombat, Assassin’s Creed e até Tibia já foram criticados como “incentivadores da violência”.

Certamente, os jogos eletrônicos são tanto um produto quanto um meio artístico, que pode ser usado para representar ideais dos autores ou passar uma mensagem, assim como um filme, ou música. No entanto, há um grau extra de imersão nesse nicho que o diferencia de qualquer outro: a possibilidade de controlar e escolher. Essa característica, de certo modo, torna o jogador parte da obra, trazendo suas ações para junto de sua interpretação dos temas propostos.

Jogos, como Heavy Rain, imergem os jogadores na trama por meio da jogabilidade. (Reprodução)

Essa camada extra de interação pode soar como um fator contribuinte para a imersão narrativa, como em Heavy Rain, ou ser dissonante, como em Counter-Strike – não há política, apenas jogabilidade tática. A arte possui o potencial de se conectar com seus consumidores, os jogos eletrônicos tornam isso ainda mais particular.

E como qualquer meio artístico, os jogos também podem ser usados para passar mensagens difíceis, pesadas e até mesmo inapropriadas ou criminosas. Na grande indústria moderna, títulos que incentivam diretamente crimes violentos ou racismo, por exemplo, são inexistentes, já que são vetados e proibidos antes mesmo de serem desenvolvidos. Ainda assim, como os filmes snuff ou músicas que fazem apologia ao crime, pequenos desenvolvedores podem financiar e publicar suas obras ilícitas na internet como preferirem.

Nesse contexto, não estamos falando de jogos independentes comuns – como Stardew Valley ou Fear and Hunger, para um exemplo mais sensível. Jogos verdadeiramente ilícitos, que incentivam atos criminosos, ficam abaixo do radar comum e circulam entre nichos específicos da internet. Para um exemplo claro, há Schnell Online, um jogo obscuro e sem distribuição oficial que supostamente servia de fachada para a comunicação entre pedófilos.

Schnell Online, supostamente, era uma fachada para a comunicação entre pedófilos.

Com isso estabelecido, é importante esclarecer que esse não é o caso de The Coffin of Andy and Leyley. Apesar de seus temas polêmicos e altamente provocativos, o título parece apostar em seu uso apenas pelo valor de choque, servindo de suporte para uma narrativa satírica de humor controverso.

Quais os temas e história de The Coffin of Andy and Leyley?

A história acompanha os irmãos Ashley e Andrew, isolados em um prédio durante uma quarentena provocada por uma contaminação na água. Ao longo da trama, a relação entre eles se revela extremamente tóxica e codependente, ultrapassando limites convencionais ao apresentar elementos de incesto emocional e até mesmo sexual, especialmente em alguns finais da narrativa. 

Desde a infância, Ashley exerce uma possessividade doentia sobre Andrew, controlando suas amizades e manipulando situações, inclusive causando a morte de uma colega. Essa ligação distorcida se torna o eixo central da história, marcada por afeto disfuncional, violência e manipulação psicológica.

Andy e Leyley.

Além disso, a narrativa revela o histórico traumático e abusivo vivido pelos irmãos, incluindo negligência dos pais, que os consideravam uma decepção e os entregaram a um esquema ilegal de tráfico de órgãos. 

Movidos por ressentimento e necessidade, Ashley e Andrew planejam e executam o assassinato dos próprios pais para usar suas almas em um ritual demoníaco, necessário para recarregar um amuleto que mantém seus poderes e sua sobrevivência. Esse ato representa uma ruptura definitiva com o passado, simbolizando vingança, desespero e o aprofundamento da influência sobrenatural que consome os protagonistas.

Apesar dos gráficos cartunescos, The Coffin of Andy and Leyley é violento.

O desenlace da história apresenta múltiplos finais, incluindo tragédias como suicídio mútuo dos irmãos em um gesto extremo e romantizado, assassinato fratricida em meio a uma briga desesperada, ou a submissão total de Andrew ao controle psicológico da irmã. Em todos os caminhos, a narrativa expõe como traumas familiares, abusos e laços disfuncionais podem levar à destruição moral e física, usando o sobrenatural como espelho para a degradação humana.

The Coffin of Andy and Leyley realmente inspirou o crime?

Para o delegado responsável pelo caso, Carlos Augusto Guimarães, The Coffin of Andy and Leyley foi uma inspiração direta para o crime. As mensagens apuradas pela Polícia Civil não apenas revelaram que o casal discutia detalhes sobre o enredo do jogo, mas também sugeriram que eles se identificavam com os personagens.

Por outro lado, apesar dos temas bizarros do jogo, é importante reiterar que ele somente conta uma história – e não incentiva, para todos os efeitos, atos criminais. Sendo um jogo de terror, The Coffin of Andy and Leyley não comete uma infração ao abordar temas delicados, que em certos tópicos podem até mesmo ressoar com a realidade de muitos jogadores. Esse fator, inclusive, foi um dos diferenciais que consagrou Silent Hill 2 como um dos melhores jogos do gênero.

Silent Hill 2 aborda temas pesados de maneira sensível, e pertinente à classificação indicativa.

No entanto, assim como em qualquer outra mídia, assuntos delicados e sombrios devem ser abordados com responsabilidade – por esse motivo, há a classificação indicativa para o consumo. E, justamente nesse ponto, há um problema: ao contrário de Silent Hill 2, restrito ao público adulto, The Coffin of Andy and Leyley possui recomendação para maiores de 14 anos.

Apesar dos avisos de conteúdo e do estilo de arte “inocente”, a classificação de The Coffin of Andy and Leyley no Brasil é altamente discutível. Enquanto o jogo tecnicamente se enquadra nas diretrizes nacionais, estabelecidas pelo Ministério da Justiça e ClassInd, seu imaginário, comunidade e universo são muito mais sugestivos do que outras obras da mesma faixa-etária.

Como são os outros fãs de The Coffin of Andy and Leyley?

Durante a elaboração da reportagem, o Voxel acessou comunidades não-oficiais de The Coffin of Andy and Leyley, no Reddit (63 mil seguidores) e Discord (28 mil seguidores), a fim de obter mais informações. Em ambos os contextos, foi comum encontrar imagens pornográficas de ambos os irmãos protagonistas, além da noção comum de que “este é um jogo de incesto”, e que “quem joga e está na comunidade não é normal”.

Certamente, é uma amostragem pequena e não deve ser generalizada para todos os fãs do jogo, mas ainda representa alguns indivíduos na comunidade e sua dessensibilização perante os temas – em especial, neste caso, da sexualização e da violência.

No Discord, chegamos a contatar os administradores do grupo pedindo informações sobre a desenvolvedora “Nemlei”. Segundo eles, a autora sofreu uma exposição de seus dados pessoais em retaliação aos temas da obra, e acabou encerrando seu envolvimento com a comunidade de fãs. Seu trabalho agora é delegado diretamente ao estúdio Kit9 – que também não nos respondeu.

Para além do contexto do jogo, também é importante destacar como o consumo de pornografia também pode estar associado à essa chamada  “banalização do incesto”. Segundo o levantamento do site Components, de 2019, vídeos de “falso-incesto”, explorando relações sexuais entre “famílias postiças”, se tornaram cada vez mais comuns em grandes sites de conteúdo adulto e podem estar contribuindo para a mudança de percepção e comportamento de jovens usuários.

Dados da Componente, com o crescimento do termo “step” nos vídeos do site PornHub.

Os cuidados para a navegação de crianças e jovens na internet

Independente da obra ou comunidade acessada, é sempre válido reforçar o papel da classificação indicativa sugerida – ou seja, não é proibitiva. Por esse motivo, os pais e responsáveis devem estar atentos às mídias consumidas por seus filhos ou menores de idade em seus cuidados.

Para o delegado Carlos Augusto Guimarães, a interação dos jovens foi distintamente afetada, não apenas pelo consumo indevido de The Coffin of Andy and Leyley, mas outras obras adultas – como Precisamos falar sobre o Kevin, referenciada nas redes sociais de um dos suspeitos. “É possível perceber a exposição a conteúdos violentos,” ele afirma, “Precisamos monitorar os jovens o tempo todo nas redes sociais”.

Precisamos Falar Sobre o Kevin trata de um jovem que comete um crime terrível.

O Voxel entrou em contato com a Polícia Civil do Mato Grosso e a Polícia Civil do Rio de Janeiro, além dos desenvolvedores de The Coffin of Andy and Leyley e representantes das comunidades de fãs. Até o momento da publicação, não houve resposta.

Todas as referências e fontes utilizadas para a reportagem estão anexadas a seguir.

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